sexta-feira, 23 de julho de 2010

Impressões de uma manhã no mercado

Ao professor Henrique; mecenas de artistas, poetas e bêbados.


Percebo certa tristeza pairando no ar,
Um desencanto latente nos olhares,
Lembranças flutuando nas mesas do bar
E a nostalgia que permeia alguns lugares.

Numa melancolia que não há quem console,
Com copo, caneta e papel em mãos,
Vivendo a desesperança de só mais um gole,
Fico sentado em “momenterna” contemplação.

Encontro-me com tudo o que fui e não mais sou.
Num torturante e retroativo sentimento
Recordo-me de alguns amigos que a morte ceifou,
Outros..., a mágoa, o ciúme e o ressentimento.

Sei que sou a pura e fatal conseqüência de mim mesmo,
Fruto desta minha forma de sentir quase tudo.
Alterando signos e sobrelevando minha dor ao extremo
Como se o “i” sempre iniciasse a palavra mundo.

Completamente submerso em estranho delírio
Penso naquilo que embora perto esteja bem longe...
No amor legítimo e no amor espúrio,
No futuro que ontem eu pensei que teria hoje.

Subitamente o teatro da vida me enlaça e atiça.
Capto a aura de uma obra de arte,
Porém minha exegese não lhe faz justiça,
Pois diante do todo, distorço-lhe as partes.

Num processo lento e perene
As verdureiras arrumam barracas.
O tempo então se espreme,
Formando pinturas densas e opacas.

Sinto o aroma, o aspecto e o gosto.
Batatas, pimentas, limões;
Chão sujo, cachorros, esgoto
E um velhinho com sua camisa sem botões.

Há mesas manchadas com sangue frio;
Peixes pendendo das mãos dos peixeiros;
Facas nervosas cortando horas a fio;
Cascas, cabeças e escamas rodopiando nos bueiros.

Duas mulheres bonitas e antipáticas,
Com trejeitos chatos e sorriso pobre,
Balançam suas bundas brancas e elásticas,
Desdenhando de tudo com olhar esnobe.

Vejo um deficiente com suas muletas;
Engraxate, sapatos, caixote;
Um mendigo curtindo a sarjeta
E um alcoólatra à beira da morte.

Jogadores compulsivos repetem movimentos infatigáveis,
Formando nuvens tóxicas com seus cigarros
E bajulando máquinas caça-níqueis estéreis e instáveis
Com suas luzes foscas e desenhos bizarros.

Deparo-me agora com as imagens que mais me comovem:
Uma menininha sorridente pedindo esmolas,
Um andarilho tristonho de aspecto bem jovem
E uma grávida ininterruptamente cheirando cola.

Num entrelaçar de gestos, pensamentos e expressões
Os passantes entreolham-se de soslaio.
Tudo se reúne num desconexo bloco de ações
Como numa peça desprovida de ensaio.

Os peixeiros conversam asneiras,
As mulheres se vão com sacolas pendentes,
O velhinho vende cordões, anéis e pulseiras
E o engraxate lustra os sapatos do deficiente.

As verdureiras falam sobre ervas e seus mistérios,
Repentinamente surgem melodias inexatas,
O alcoólatra e o mendigo balbuciam impropérios
Num frenesi característico dos apóstatas.

Os jogadores perdem seu dinheiro diante de uma platéia
Indiferente a quaisquer das possíveis conseqüências.
As máquinas caça-níqueis engolem onomatopéias
E os cigarros vomitam suas diversas substâncias.

A menininha recolhe os seus trocados,
A grávida perambula alucinada,
Os cachorros perseguem ossos por todos os lados
E o andarilho desaparece, seguindo sua jornada.

Ao redor tudo impressiona o meu olhar,
Neste local não há o que se disfarce,
O formato das bocas e nuances das formas de falar
Ou a compleição fatigada retida em cada face.

Ouço a voz de um homem de sorriso contrafeito,
O tilintar de moedas nos balcões.
A angústia mergulhada no meu peito
Uni-se à fumaça cancerígena injetada nos pulmões.

A fome surge esmagadora,
O estômago dói e me contorço.
Admiro ainda mais a missão exploratória
Dos ambulantes em sua batalha diária pelo almoço.

Um amigo abre mão de beber para que eu beba,
Em um gesto quase bom e semi-mau,
Insistindo para que eu receba
Aquele néctar inebriante e transversal.

Cai então o peso do álcool nos meus ombros,
O ambiente torna-se cada vez mais kafkiano,
Vejo criancinhas inocentes nos escombros
Tornando-se criaturas distorcidas de olhar profano.

Numa prosopopéia altamente alucinatória
Mesas e cadeiras dançam de um jeito jocoso,
As facas fitam-me de forma interrogatória
E as garrafas esfregam-se até chegarem ao gozo.

Cada elemento presente me enleva e impele
A uma amálgama de náusea, paixão, calor e afeto.
O ar quente e úmido envolvendo a pele,
As paredes estreitas, sombras e frestas de luz no teto.

Pensadores inconscientes e maltrapilhos;
Poetas que nunca foram laureados em academias;
O pobre burguês e o proletário sem filhos,
Acabam confluindo suas inumeráveis filosofias.

Metonimicamente o mundo inteiro está ali,
Cada ser representando um único e enorme “EU”,
Seguindo na condescendência coletiva de existir.
Quanto a mim..., tudo o que restou já se perdeu.

Com os efeitos de uma mente embriagada
Sou (álcool)poeticamente marcado
Pela poesia desentranhada
E esta sub-sóbria manhã no mercado.

Edwin Fernandes Xavier...
Caxias, setembro de 2008.

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